segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

O fim!


Era o fim, sempre o fim. Cansara-se daquilo há muito, mas não podia evitar. O fim sempre estava ali, logo após tudo, tão óbvio, tão fatal. O fim o devorava, um pouco e sempre todas as vezes que sentia o seu gosto. Isto era o que havia de mais estranho em sua vida, o inevitável fim.
m

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Lançamento do caderno "De víveres e haveres"



Um ano após a forja das palavras, eis que surge para os primeiros tabelionatários o resultado de seus esforços. Segue o convite para o lançamento do caderno "De víveres e haveres", realizado por forjadores de palavras de Tubarão e organizado pelo mestre Dennis Radünz, em manhãs e tardes mornas de novembro e dezembro de 2007.
Aos novos tabelionatários, não se esqueçam que ano que vem serão vocês.

Escritores inéditos lançam livro no SESC

11 escritores tubaronenses deixam de ser anônimos para terem suas obras publicadas, na quarta-feira, dia 17 de dezembro. Eles tiveram seus contos impressos no caderno "De Víveres e Haveres", fruto de uma oficina de escritores realizada pelo SESC anualmente. O lançamento acontece no restaurante do SESC, às 20h.

Para lançar a obra, os novatos autores organizaram um Sarau Poético. Nele, haverá apresentações musicais, performances teatrais e declamação de poemas. A entrada é franca e a participação no Sarau é também aberta ao público. Desse modo, quem se dirigir ao restaurante do SESC na próxima quarta-feira pode, sem nenhum problema, declamar seu poema ou cantar a música que compôs.

"De Víveres e Haveres" foi organizado pelo escritor Dennis Radünz, quem ministrou o curso de escritores. O trabalho durou três fins-de-semana, nos quais os participantes tiveram contato com o universo literário, conhecendo a teoria daquilo que eles deveriam pôr em prática. O resultado agradou aos participantes. "Fiquei muito feliz quando vi o meu conto impresso no livro. Dá a sensação do dever cumprido, a gente sente que valeu a pena todo o trabalho", conta Vivian Sipriano, estudante de Jornalismo, que participou do curso de escritores realizado no ano passado.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

O Princípio









não se sabe ao certo se é o princípio ou se é o fim. apenas surge inexplicavelmente em algum lugar um ou mais pontos no escuro.
o efeito desse acontecimento, se pararmos para pensar, é extraordinário. um escuro total é invadido por um ponto branco, ou vermelho ou amarelado... depois outro e outro. estrelas pixeladas no abstrato dessa não-cor. do suposto nada, algumas linhas se desenham e formam o infinito. podemos imaginar as formas, as abstrações desses pixels. podemos imaginar o que o fez existir. uma explosão, uma reação qualquer? algo leve, algo pesado, podemos imaginar até uma tesoura perfurando o preto, uma lona se desfazendo, um plástico derretendo. podemos dizer que atrás do escuro as imagens sempre existiram. nunca nasceram.
na verdade, o evento seria maravilhoso, mas não acompanhamos os eventos diários. a maravilha se repete em cada amanhecer, mas não há tempo. todos os dias o relógio toca e nos levantamos a contragosto. café, cigarro, celular, chaves, ponto. ali passamos nossas oito horas e voltamos pra casa cansados demais para ler um livro ou assistir a um filme. cansados demais para transar ou para se incomodar em saber como os dias nascem e as noites morrem.


In: só se for mais





quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Aurélio botou fogo na árvore
atrás de casa, frutífera
fogo era tempo, o tronco passado
ausência que o traçado consumia
a pele do fruto abrindo, expondo a polpa víscera,
e a membrana cedendo vida, carvão
ruína úmida de planta, brilho extinto de folhas,
de ramo precipício
plana fuligem, ninguém respira o ar da casa
raiz hospedada no trecho, no solo mudo,
sem comunhão
memória de um sol deposto
arde aquilo que era
enquanto queima no pátio,
pendurado na árvore acessa
se despe dos olhos de Pai,
sem alvo, sem ar

Douglas König de Oliveira
Joana morreu
nossa vizinha
sigo atento
este afeto urbano
de pertencer a mesma quadra
e compor a sala
de velhas cadeiras
os golpes que contam
que enfeitam
num canto agoureiro
coro de corvos
de plenas fraturas
trinados de um rasgo certeiro
retrato de açougue
estampada sorte
em que se enrola os peixes

era freqüente
em nossa casa seu pálido e estreito
revestimento
torcido alicerce
e cascas de cal
represa expressão pela
cicatriz acre, esquerda
órbitas capturadas
paralisia funda, acesa

lábios retesos
barram a saliva azeda
a pele rígida, réptil
vestida de pó
tarde lenta
de impressões famintas
os ossos dos pés
estalam ocos
nos sons das tampas
pelo vidro
gestos adormecidos

forjadas sem fio
as manhãs em que os vizinhos morrem
parecem iguais
seguir o tráfego obtuso
brisas mórbidas de café
conchas violáceas que reportam o mar
tecido rasgado da infância
cães e plumas sem nome, esquecidos
na carne falida dos miolos


Douglas König de Oliveira

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Repetições

Ela sempre fora muito alegre e cativante. Simpática, além de bela, não havia quem não a desejasse. Ela, encantada com todos os galanteios, só lamentava as cantadas grosseiras e fúteis. O mundo era de arco-íris para ela. Porém, havia um problema, grande. Ela era ingênua.

Casou-se a primeira vez, ainda nova, quando se entregou totalmente àquele que lhe parecia o príncipe encantado. Beijou o príncipe mil vezes, e cada beijo parecia transformá-lo. Um dia o príncipe acordou sapo. Foi custoso, mas resolveu deixa-lo, encantada que estava por outro, este sim sua cara metade. Passada a dor da separação, ainda que a separação fosse caso de vida ou morte, vieram os momentos de alegria. Até que... A sua outra metade roubava-lhe a metade que ela era, seria, não era. Sentiu-se exaurida. O encanto a fez cair nos braços de outro.

O outro era tudo, trabalhador, sério, respeitava-a, até a deixava trabalhar fora, mas nada que comprometesse o serviço da casa. Ah! Os outros dois não permitiram que ela saísse, mesmo para passear. Agora, uma evolução e tanto. O tempo, parecendo sempre ingrato, tratou de mostrar o mundo. A liberdade condicionada roubava-lhe a vitalidade. O outro parecia um vampiro. A separação novamente, ele achando que dera muita liberdade para ela, ela se achando uma total fracassada.

O tempo passou num vazio. Nada mais parecia interessá-la. Foi quando ela percebeu algo novo, algo que poderia mudar a sua vida. E aí estava uma das grandes ingenuidades dela, acreditar que alguém poderia mudar a sua vida. Foram tempos difíceis, de muitas dúvidas, mas numa esperança que se avolumava. Era ele quem ela tanto procurava. Agora sim seria feliz. E aí estava outra, acreditar que alguém poderia fazê-la feliz.

O casamento foi comemorado com grande alegria. Muitas pessoas, “agora vai!”, e tudo o mais. No dia seguinte, ao acordar, ela virou para o lado, e não reconheceu quem ali estava.

P.S.: Pra dizer o que eu penso das eleições nos EUA. Torço para estar enganado.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

o mundo em seu destino, e eu aqui, causando o caos

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sábado, 18 de outubro de 2008

Fuga


Estava exausto! A perseguição fora implacável. Agora, temeroso de que o encontrassem novamente, ficava imóvel atrás dum muro, dum jardim de alguém que ele não conhecia. O cheiro exalado pelas plantas não era mais forte que o seu, de suor. Barulho e vozes ali e acolá, e ele tentando imaginar onde havia errado. Tão atordoado estava, confundia-se, tentando adivinhar se aquilo tudo era real. Parecia um filme. Seus olhos pesavam insistentemente. Percebeu que não suportaria mais tudo aquilo. Desligou o computador e foi dormir.
M

domingo, 5 de outubro de 2008

vocalizes nocivos

uma tecitura
n oitavas
na face gritante o esforço
gestos de impulso, olhos crispados
a boca em seu auge
o som? o da minha garganta sendo destruída

sábado, 4 de outubro de 2008

Sorte!


Hoje saí de casa
Pra jogar na loteria.
Perdi muito dinheiro.
m

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Plástico



Do pote da cozinha
do mais fundo vazio do pote
de lá e para lá são todos os reclames
depositados sem propósito
dos passantes sem cabeça
dos edênicos de fé que buscam
a partir de um recheio qualquer
em dedos ansiosos calejados nas beiradas
um não saber o quê extraordinário
duma fuga de um outro vazio.


Tássia Búrigo

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Carência

Desceu a rua despreocupadamente. Antes, talvez, estivesse distraído. Se perguntassem, não saberia dizer o que pensava naquele momento. Seguia. Talvez estivesse anestesiado por tudo o que ocorrera na véspera. Anos vivera dum jeito que não o deixava contente. "Felicidade?", perguntavam, perguntava respondendo. Não, não acreditava que a tal da felicidade pudesse existir. "Bobagem!"

Adiante viu um casal de namorados, tão próximos, colados, parecendo um só. "Um só..." Era isto que lhe haviam ensinado, ser um só com o seu par. E lhe falaram em mulher ideal, em cara metade, em alma gêmea, e se esqueceram de falar da solidão. Ninguém nunca lhe havia falado em solidão. Era assunto proibido. Parecia mesmo que a tal solidão não existia. E existia!

O casal apaixonado o fez sentir-se carente. "Carência!", quase falou alto, mas conteve-se. Era isso, então. Por causa da carência, do medo da solidão, havia se submetido a uma relação que não poderia continuar. Esquecera-se de viver a sua própria vida. Vivera a vida de outro alguém, mas que também não era a vida desse alguém, a não ser uma suposição, um achar que "era pra ser assim", pois assim lhe haviam ensinado.

O casal apaixonado agora discutia. "Mas o que diabos há com eles?" Ele também já fizera isso. Ah, a vida! Tão contraditória, tão cheia de medos. O que o deixava aliviado, é que agora se sentia livre, e achava que ela devia estar pensando o mesmo. Se não, um dia pensaria.
m

Dois

Dois. O olhar pousou agitado diante do número. Mordiscou os lábios, frenezi, medo, angústia.. o que mais? Dois. Acendeu um cigarro na esperança vã de acalmar-se. Mas calma alguma o traria de volta daquele suplício. Dois. O número girava-lhe na retina, como calendoscópio. O estômago doeu forte, como se tivesse levado uma facada, como se estrebuxasse ali no meio do corredor do hotel. A porta, marrom, maciça, sem detalhe de importância, parada imóvel diante dele. Do outro lado um certo barulho, risadas, ritmos... acendeu outro cigarro.. do nervoso deixou-o cair no carpete vermelho. O suor também caiu pelas temporas. Vontade de esfaquear agora sentia. De enfiar a mão inteira pelas vísceras arrancando-as com os dedos curvados em garra. Sentia as mãos enrubecendo-se do sangue imaginado. Já não era nervoso o que sentia, mas um ódio delicioso e quente de quem deseja matar alguém. O ódio dos assassinos sem culpa. De repente, o dois, feito de metal bronzeado, parou diante dos olhos, fixos, tesos, orgulhosos olhos. Abriu a porta e.....




Um pequeno e breve exercício de escrita.... silv!

domingo, 14 de setembro de 2008

a r e u n i ã o



Nem o sol estendia suas abas flamejando o escuro e já haviam seis ou sete deles ali. Os portões de metal unidos por uma corrente de aço e selados por um cadeado. um vulto humano de capacete amarelado que se aproxima. uma chave não brilha em sua cinta e ele pára em frente ao portão. pequenos sons internos de desespero em meio ao silêncio: um desespero imaginário. o semicírculo de fogo projeta os corpos, o muro imenso, as construções e suas escadas, as chaminés e a sujeira que quase dilui o ar. um ruído grave e contínuo buzina a hora. Barulho de chave, olhos atentos. Os portões são abertos e as pessoas disparam.


adentram a sala


A sala é escura, barulho de água por todos os lados (os pingos, são sempre os pingos e seu barulho que nenhum deles consegue suportar mais, a sala cheia de água podre, corrimento de canos podres), a água cobrindo meio centímetro de altura; um cabideiro de quatro lugares para casacos e chapéus, quatro cadeiras, três pretas, uma vermelha.


Ele chega sério, como sempre. Como sempre,coloca seu chapéu e casaco no cabideiro, senta-se, cumprimenta à todos os membros, primeiro o da direita, depois, o da esquerda com apertos de mão. O outro recebe um aceno. Um, atrasado, está de pé. coloque suas tralhas aí. as mãos tremendo, obedece a ordem dEle sem qualquer hesitação e deposita o casaco e o chapéu no chão. A estrela era por detrás das paredes, não que algum deles pudesse ver ou se interessar no momento. apenas parecia um pensamento assim o silêncio momentâneo.


Marco Aurélio Castro Rodrigues

sábado, 13 de setembro de 2008

passeios



talvez esse momento não exista e não possamos acreditar esperar confiar no dia em que o pensamento será ação isso porque não são os dias e sim pessoas dito assim desse jeito não parece um raciocínio muito difícil e isso porque não é o pensamento está formulado embora a ação não nem pra uns não nem pra outros mas apenas o que precisamos discutir não precisamos e o que precisamos não discutir é uma mancha escondida atrás do armário




as luzes estão apagadas frio chuva o barulho nas escadas o silêncio nada mudo dos outros aposentos barulho das coisas ligadas o barulho dos meus dedos digitando algo que narrativa poema ficção mas que sem nenhum motivo carta manifesto confissão apenas revelam minha inquietude a insanidade que me perturba o meu enjôo o meu peso ou ainda o apenas peso os olhos não sabem o que procurar o corpo está deslocado sem senso de direção enquanto a mente povoada de seres que não (re)conhece concentra-se no nada mais uma vez para nada dizer mas sem saber se para ficar silêncio


Marco Aurélio Castro Rodrigues


adaptação do texto série:passeios
publicado originalmente no site http://soseformais.blogspot.com

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

porta retrato



São inúmeras tendas saindo do vértice da lâmpada. O cone baço é orientado pelo filamento de um coração elétrico, enquanto no escuro entre eles ninguém transita. Dos outros distingo a silhueta e algo que o vento traz de uma tenda a outra, quando é favorável. Toda tarde recebo meu almoço nú, sem o qual anoiteço. Quando a vista arde desvio para longe, para nada. Não estamos sós porque não esperamos ninguém.
Conheço o velho do poste ao lado, que me manda cartas sobre sua vida. Diz que seu casamento é uma lata de sardinhas pornográfica. Já vivi isso também. Sorrio pelo que diz, mas de onde está minha figura não muda. A mulher fez um vestido com folhas de calendário, e guardou os janeiros para o chapéu. Não diz muito, não sei o motivo. Mandou-me pela corrente um retrato de santo, de suas folhinhas de mês. Creio mais nos dias que no santo, mas guardo comigo.
Algumas vezes toca um samba, feito de sirenes, que vem de uma luz distante como memória. É quando a mulher do vestido dança. O velho tenta acompanha-la, desajeitado. Naquele último dia foi quando nos divertimos. Nos outros fomos silêncios acompanhados.
Vemos as faíscas de gente que sobe nos postes, e desdenhando a lição dos pássaros, se incandesce entre os fios. Já bati o crânio também, mas apenas para trocar de dor. Nada acontecia demais, colhíamos das horas a rotina. Mas daquela vez a luz se apagou, depois a paz do lugar. Corríamos como cegos para abraçar alguém.


Douglas König de Oliveira

terça-feira, 9 de setembro de 2008

duas faces



No meio da ponte na cidade azul
a lua resplande no Rio Tubarão
e de lá recolhe
o pouco do tudo pra continuar
cheia de encantamentos
abre todo seu brilho
corre o verde rio
e vai se perder na usina.


Vem às dez da noite o pequeno vagão
as luzes acesas nos trilhos
um ritmo vago
de um tempo perdido de ferro e carvão
corta a cidade
pelo seu coração
segue seu rio
seguido do som da buzina.


Marco Aurélio Castro Rodrigues


postado originalmente no http://soseformais.blogspot.com

domingo, 7 de setembro de 2008

Da casinha



Na noite, espera o claro. Põe-se em alerta quando o galo canta. A vista para a casa vizinha remonta expectativas diárias. Ruídos são eminentes e o trinco da porta não tem mais sentido; o ar é suspenso. A abertura lenta atormenta e acalma. Os olhos agora são imãs. Os pêlos arrepiados fazem moldura para um corpo trêmulo. O sol, então, vai beijando o chão e iluminando os pés daquele que a faz feliz. A barra da calça vai surgindo, conforme os raios tomam conta. Como água que corre, as pernas vão aparecendo em meio à escuridão da qual ele surge. A cinta de couro, num bordô fogueira, apresenta a camisa, hoje marrom fechado. O cenário da aparição diária é tão inédito quanto o de ontem. Os metros de fronteira diminuem gradualmente. O desejo do toque ascende. As passadas dele são largas e firmes. As dela, raras e fortes. A distância quase se anula; parecem levitar no enamoro da cena e surge o auge rotineiro. Pausa.
Apressado, ruma para a garagem, tomando o carro como quem mata a sede. Agora, só o sal do choro dela no chão; a tina pálida com ração, a coleira sem furos, apertada...


Tássia Búrigo

Velado



Com a mão esquerda puxou o jornal, ainda enrolado. Sossegou o noticiário na mesa mínima, enquanto punha os vidros de fazer ver. Tem um bloco de memórias aberto e uma porcelana fininha, branca, com dourados de trinta. Todo café da xícara tomou o corpo do quarto verso...


Tássia Búrigo

sábado, 6 de setembro de 2008

da rotina dos videntes



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A praça central é ampla. Sob a calçada passa a corrente de habitantes, também a vida que está por vir, que esperam. O prédio será belo, imponente. Se acontecer de seus planos ficarem debaixo do concreto duro, que fazer? Não seqüestramos sua luz. Ela é frágil, ilusória, perecível. Negociável. Sou dono de um pedaço do mundo maior que o deles, agora do centro da cidade. Também possuo um bocado de suas vidas, talvez uma fatia de seus olhos. Ou uma vista inteira, sem a qual não vemos em profundidade. Aqueles músicos, que vejo a tanto tempo na lateral da igreja, perderão o seu palco. E se ele soube-se que irá se enamorar daquela, que se afastará da praça, descarrilaria?



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A tanto nesse vão da praça, vendo as pessoas entrarem na igreja. Suponho que já devem estar salvas. Quanto a nós, não sei. Acho mesmo que não nos amamos. Estamos ligados pela dureza da vida, pelas mesmas cicatrizes. E nada ameniza, nem a beleza das canções.


Oricuri
Emoriô
João Donato e João do Vale.


Carinhoso
Beijo Partido
Coração Leviano
Pisa na Fulô.


São nossas marcas, feridas. Somos dois cantores, pobres e inermes. A sombra da catedral nos torna invisíveis. Nossas vozes se tocam, serpenteiam. Mas o corpo se evadiu das bodas, do caduceu. Estamos sem teto, não somos mais casa sem nosso filho. Aquele velho sentado no banco, na praça, adereço como nós. Não parece triste. Uma alegria de pedra, de substância imóvel. A boina vermelha que me identifica, artista, está puída. Tenho que tecer outra. Preciso de algumas novas, tecidos diferentes, confortáveis. O homem da praça vai voltar para casa, pra mulher. Irá ver a porta ainda aberta. Será corrompida sua alegria de pedra, sua paz?



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Venho mais uma vez a praça. Saí do escritório tonta, sonâmbula. Meu banco está ocupado por outros. Me sinto desrespeitada, ainda que nada seja meu. Queria poder segurar um pedaço, uma fatia de tudo que por hora acaba, para guardar comigo no caso de ninguém chegar. Te envolver em uma casca que não chocaria. Te manter aquecido no meu hálito, preso numa câmara sem portas, minha. Gosto da praça, do rasgo em que o céu aparece, da movimentação. Estar aqui me deixa segura. Sei ao menos que a praça não vai acabar. Conheço de cor o repertorio dos cantores, os produtos dos feirantes, os livros que deixam pra trocar. Alguns estão ali desde tanto que até me esqueço. Olho os pombos. Será que são sempre os mesmos? Me despeço de ti numa foto, pra parar o tempo precioso que fomos. Hoje qualquer canção me comove, como a última luz da estação mais viva. A verdade é que seu filho não vai voltar. Debaixo da boina vermelha, desbotada, saberia de um caminho como o do leiteiro, que morreu inocente, alvejado na madrugada.



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Dou voltas na cidade, me enovelo, mas acabo sempre aqui. Paro com os joelhos doídos e percebo ninguém do meu lado. Ainda não me acostumei. Sinto o som dos seus comentários, como fazendo vibrar o ar em minha direção. Talvez despojos da memória que ainda insisto em lustrar. Sigo nossos passos na calçada, os rastros dos nossos encontros antes de ficarmos juntos. Ainda te perco, a cada dia um pedaço. Quem nos falou desse trato, dessa forquilha insana? As gerações na praça me consolam, me ajudam a entender. Vejo uma moça atenta a música, que parece trespassá-la. Porque não anda, se esquiva da dor? O que expurga nesse choro seco? Se lhe conta-se do retorno, de suas outras chances, deixaria a poeira, a erosão lhe tomar?



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Ainda me grito: Atraiçoado! Me encosto no banco. Estou sob o céu, e só. A terra seca sabe do fato, me agride e me toma o peito. Despeja minha alma no passeio e me exige pescar. Sou vegetal rude, castigado. Sai dos infernos pra não matar quem me amou. O frio mais intenso foi o meu calor, sozinho. Atraiçoado. Daquela aventura ficou o bocado que me amarga a língua, perene. Não desses razão pra que tu fizeste. Me sento na praça e vejo meu lar. Flutuam calçadas, entortam os postes, reviram as gentes pra não me obstruir. Avisto o casamento, jubiloso instrumento pra resistir a seca, para um deserto coração. Revejo a casa, o cheiro dos filhos, paragem agreste onde era feliz. Insisto em seu rosto, nos poros, nas sardas. Seu mapa inteiro ainda guardo. Meu rosto parado não chama atenção, como quem sabe que não choverá, tão cedo. Espero a balança pender para um lado. Um vento macio sai do prato direto. Uma lâmina azulada do prato esquerdo. Se fico feliz é porque me iludo, procuro algo além do que sou: Castrado. Aquela senhora parece absorta, pacífica. Passeia num cemitério de emanações. Não sabe da sorte, do seu desabrigo. Não sabe da morte, do dia de não estar, da lâmina apontada para o seu umbigo.



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Meu canto está dolorido, como garganta inflamada, perdida. Do sorriso que dou para Selma não extraio alegria. Apenas os sons que se curvam na boca, que raspam nos dentes, se orientam na língua e saem, libertos. Mostro o cansaço de ficar nessa raia, aos olhos de alguns e suas bondades. Sou injusto em pensar que não estamos mais juntos. Ela está, não tenho dúvidas, em mim. Cantamos na praça depois de desaparecido nosso filho. Perdemos o prumo, a bússola tenra, os pontos cardeais. Ficamos parados, como quem se perde em uma feira, pra ele nos achar. Não sei de quem é a culpa se o afeto secou. Vivemos das cascas. Se vejo uma moça bela e jovem se emocionar com o que canto, me preparo pra fugir. Não sei se consigo, deixar a mulher e o filho ausente pra trás. Se sei daquele janota que porá em silencio o lugar não conto a mim mesmo. Pois cresce a coragem de botar em curso a vontade que eu não quero ter. Ensaio os sorrisos, os quantos mais for possível, pra combater a maldade que faria em te deixar. E canto. Lembro e saúdo aquilo que faziam na praça, que acendia o lugar: uma cesta de frutas, um bom livro, intacto, um solo de clarineta.




Douglas König de Oliveira

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Elevações

Você acha que sabe como me sinto, e finge entender minha situação, minha falta de perspectiva, minha agonia interior, meus distúrbios emocionais, mas a verdade é que você não faz idéia do que é ter consciência de si mesmo. Às vezes, essa consciência vem tão forte e reveladora, que chega a doer fisicamente, me levando a querer me punir, me flagelar, e às vezes, me levando a fazer isto de fato. Então, você me vê, e me manda um sorriso forçadamente terno, tentando de alguma forma camuflar o seu verdadeiro conceito sobre mim, a sua agonia em me ter por perto e principalmente o medo da suposta força adversária que represento pra você.

Você diz que não sabe como consigo ser tão auto-destrutiva. Não existe mais o que destruir. Você escuta isso, e diz que sou exagerada e ingrata com Deus, a vida, o cósmo e sei lá mais quem. Gratidão é algo que não se sente por obrigação ou conveniência. Sente-se por reconhecimento de algo bom.

Você diz que sou tão triste, que meu olhar é sempre vago e distante. Então, você se aproxima de mim e tenta me dar algum prazer sexual, como se dessa forma eu/você pudesse manter meu corpo ocupado em sentir o seu. Mas, nem sempre eu sinto. Às vezes, não te sinto dentro de mim. Estou tão compenetrada em me imaginar num plano superior que simplesmente não te sinto. Então, olho para o teto de algum quarto qualquer, na esperança de que ele se abra e algo de bom me seja mostrado dos céus. Isso nunca acontece. Volto a mim, e o único movimento que percebo é do seu corpo tentando entrar cada vez mais no meu.

Minha apatia te frustra. Sua esperança em tentar conseguir o melhor de mim me deprime.

(Escrito em 28/02/2007)

Inoperância

O que sou quando penso em mim?
O que vejo quando me avalio,
Pesando prós e contras
De um ser contrariado
E em si mesmo abandonado?

Confusão..
Perdição...
Solidão...
Me encontro envolta em lugares inóspitos,
Grotas imundas no meu ser cavocadas.

Lamentações tornaram-se desleais.
Chorar já não é suficiente.
Sufocar-me não mais consola.
Desertar de meu ser é ineficaz,
Porém necessário.

Um canto à vida,
Cortejado pela morte
Na alma estampada.

(Escrito em 01/06/2003)

manicômio de sãos

indignado ser, que grita e sapateia
sobre estandartes um dia erguidos veementes...
baixai a tua bola, calai a tua boca
deixai os lunáticos dançarem nus em plena praça

o que foi, não volta
o que está aqui, não muda

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Eliseu



Meu vizinho Eliseu sempre nos conta da época em que trabalhava num cinema, onde era projetista. Diz que foi o melhor trabalho que já teve e fala dos inúmeros filmes que, de tanto passar para os outros, ficaram tatuados na sua mente. Ainda guarda alguns cartazes desses tempos em sua casa, e volumes de historias sobre cada um deles, de suas glórias. Mas ele se emociona mesmo quando conta um episódio sinistro que o fez largar a profissão:
A sessão estava um pouco vazia e já ia a metade do filme. Entra um jovem vagarosamente e vai até a primeira fileira, onde não havia ninguém. Observa o filme distraidamente, olha os cantos, tenta reconhecer alguém no lusco-fusco da sala.
A platéia atenta ao drama da tela não desconfia. Da sala de projeção Eliseu vê um movimento abrupto do jovem e seu coração dispara, não cabe no peito. Ele retira um revolver da roupa e aponta para a platéia. O som das ameaças não chegava a cabine de projeção. Eliseu vê a cena como um filme mudo, como um Buster Keaton bélico e enfurecido.
A platéia é rendida e inicia um macabro jogo de cena. O jovem começa a dirigir as pessoas em situações fictícias, como um diretor de cinema. Numa rápida conversa parece escolher um episódio com a vítima, algum que lhe tenha um significado especial. Baliza o cenário e começa a cena. Da sala Eliseu começa a reconhecer , dentre os tantos filmes que já vira, aspectos familiares nas atuações.
O primeiro representa o absurdo de não conseguir sair de uma sala, sem que haja nenhum motivo claro para isso. Se descabela, rasga um pouco a roupa e simula, ou não, um rosto perplexo. Ao terminar a cena se dirige de volta a cadeira, mas é alvejado nas costas e cai, morto. O anjo exterminador ainda não havia dado o seu indulto.
O próximo imita o olhar vazio de Alain Delon no eclipse de Antonioni. Se desloca geometricamente pelo espaço, move-se insólito com uma Mônica Vitti de corpo ausente. Ao final, como no filme, a cena transcorre sem nenhum personagem.
Vendo o inevitável abismo da situação as interpretações começavam estranhamente a ficarem melhores. Talvez pensassem que esse último ato poderia ser digno, talvez até de crítica. Surgiram gladiadores ferozes, Quixotes convictos e até um Zorro.
Um que interpretou o fim de Charles Foster Kane nem quis levantar após pronunciar o seu “Rosebud”. Ficou deitado esperando a morte ser reiterada. Outro reclamou que havia apenas uma arma para reproduzir a chacina de Bonnie e Clyde. Um senhor de bigodes quis virar Charles Bronson, ainda que de mãos vazias, num duelo de Sergio Leone. Pôde-se ver mesmo um esboço de sorriso quando caiu no chão desértico dos faroestes, na verdade o piso de madeira do velho cinema. Houve ainda um perfeito imitador de Peter Sellers, que conseguiu a simpatia até mesmo do jovem algoz. Pena ter descoberto seu talento em ocasião tão crepuscular.
Apenas uma velha senhora foi poupada. Dançando em seu ritmo frágil, como que imaginando uma orquestra que acompanha-se seus anos, criava um Fred Astaire galante na cena, em seus olhos. Além disso, o seu filme já estava chegando aos créditos finais.
Depois das inúmeras cenas interpretadas pelos atores terminais o jovem parecia satisfeito. Talvez com seu personagem, talvez por tudo aquilo operado por ele parecer uma ficção. Então, antes de sair, aponta a arma para a tela e dispara. Atinge o ombro direito de Marlon Brando. Sua cúmplice na tela, a espera de um último tango, terminaria o serviço. A luz da projeção, por entre a poeira mexida, revelava os corpos espalhados pelo chão como os russos na escadaria de Odessa.
Perguntamos ao Eliseu o por que dele não ajudar, não chamar a policia? Ele lança um olhar lacônico, como que nos condenando por querer saber demais. Perguntamos quantas balas o jovem tinha, se foi pego após o ocorrido? Ele não nos responde, não quer responder. Seus olhos úmidos impõem o respeito necessário após o alumbramento.
As vezes dá muita vontade de acreditar nas histórias do Eliseu.


Douglas König de Oliveira


da esfera polida
que contêm os fluxos
do trafego intestino
sob o alicerce das memórias
da erosão batente
da alma mineral e fria
a vaga naufraga
não encontra o local de quebrar
de torcer seu dorso pesado
no descanso elísio
o que fecunda o homem
grávido de felicidade,
triste


para João Cabral, amigo

Douglas König de Oliveira

Pedro e Plácido



Ainda me entristece o que foi acontecer a Pedro Romano. De onde veio meu vaticínio quando o vi pela penúltima vez? Jovem robusto, bem forjado pela natureza, que também lhe deu instintos de mansa escuridão. Na paisagem das coisas que falava tirei meu alimento naqueles anos. Pensei ser feliz consigo, com a tessitura de sua pele em minhas mãos, desgraçadamente juntos. Lembro da vida medida por ele: quantas vezes se ia da mais alta nuvem ao precipício. Se isso valia a paragem nesse extinto fruto de contentamento, em seus dias.
A poucos anos nascia-mos. Tentávamos descobrir algo a descortinar, exibir seus raios em nossa fronte. Da cor dos velhos já sabíamos, de atender na venda, das suas necessidades. Nas folgas nos perdíamos no casarão, com a negra de seios grandes, quando o corpo voltava a nascer. Nesse trecho foi nossa mãe. Naquele momento que roçou seu dedos no meu ouvido, envoltos em santa luxuria, os três, foi na minha orelha que buscou conforto. Embaralhava-mos cartas em chamas. Acolhi a sua brutalidade como peça frágil, e em cacos, devoto. Assim me obteve de resto.
Nunca fui feliz sem ele. Reconheço sua imagem nos sorrisos das fotografias em que apareço. É a presença dele entre minhas gengivas, meu motivo, minha canção. Mas eis que surge uma sombra peçonha. Sereia rouca que o seduziu, o afundou na maré. Não pude protegê-lo. Meu exercício de gestos ficou congelado, tristeza em mármore, desilusão. Da perfeição de sua lembrança foi morta a raiz, e o narciso foi cortado em botão.
Agora vejo sua carne estendida, inanimada. Sob o pano o recorte da face, eterno horizonte. Meu sol que se põe pela ultima vez. Engredo as mãos em seus cabelos. Sinto a ponta de suas unhas por cortar, que continuam a crescer sem fazer barulho, como réquiem de um destino final, comum. Olho a sala vazia e adentro seu dormitório unitário, por sobre seu peito gelado. Abraço-me a ele como vivo, meu amor. Beijo suas pálpebras sob os olhos vítreos, imagino suas lágrimas, talvez por mim em seu lugar. Me lembro o que dizia pra fazer rir de meu nome:

- Lá vem o Plácido, tempestuoso...

Ele não morreu.







à Lúcio Cardoso, que não morreu de malária
e Raduan Nassar, exilado da cólera

Douglas König de Oliveira

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

SOL DE FEVEREIRO

Amanheceu como sempre, nada muito novo, nenhum desespero, a vida se arrasta, debaixo do sol de fevereiro. Caras, surfistas, alguns sonhadores, alguns bateristas. Algumas flores mal plantadas. Água salgada a escorre pelo corpo, cabelo embaraçado, nenhuma preocupação. Sexo, drogas, amores e amantes. Tudo faz sentido naquela música depois de um fora, são cordas e arrependimento, o mundo se acaba e repara tudo quando ele passa, pois quando ele passa já não é mais verão ou não.

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Resposta ao invisível

Saí às 7:15 de casa. O vô me deu carona até o centro.
Eu me sinto amada. A fase em que duvidei do teu amor por mim já passou há muito tempo. Minhas dúvidas agora são outras.
Pena tu não ter me encontrado hoje. Também acordei querendo te ver. E passei o dia todo ontem querendo te ver.
Esperei por ti. Tu não veio. Te procurei. Não te achei. Resolvi me misturar aos estranhos numa sala de cinema. Saí no meio do filme.
Simplesmente não conseguia ler, nem entender, nem enxergar nada nem ninguém. Tua imagem ocupava a minha mente.

Nos vemos daqui a pouco.

(Escrito em 06/02/2008)

sábado, 23 de agosto de 2008

Sr. Dengue

O vídeo estava acabando, e as pessoas ali presentes estavam animadas. Sábado, tarde de calor gostoso para estar em qualquer outro lugar, menos ali, preso numa sala para uma palestra sobre dengue. Fazer o quê? Mas até ali estava tudo bem. O palestrante se mostrava muito dinâmico, engraçado até. E também, dengue era um assunto sério, e havia casos confirmados na cidade. O sol brilhava bonito naquele dia. Havia mesmo um gosto de natureza dentro daquela sala. Até um boi mugia lá fora, só não sabiam onde.

Mal o vídeo havia acabado, uma animação muito divertida e instrutiva, e adentrou a sala alguém fantasiado de mosquito da dengue. O espanto foi geral, dado que a fantasia se aproximava do real. É, a tarde valeria a pena, se valeria. Até o palestrante estava surpreso com a presença daquele sujeito, um mosquito gigante da dengue. Só gostaria de ter sido avisado para incluí-lo na fala. Mas, tudo bem, afinal, tarde de calor gostoso, era importante prender a atenção de todos.

- Boa tarde, senhor mosquito da dengue!
- Senhor Dengue, por gentileza!
- Claro, claro! Mas, diga para nós, o que veio fazer aqui?
- Mostrar o que um mosquito da dengue é capaz.
- Ótimo! Então nos mostre.
- Um voluntário, por favor!

E lá se foi uma. Súbito um “ó” uníssono na sala. O Sr. Dengue havia sacado uma espada que trazia debaixo duma capa vermelha.

- É japonesa!
- É de toureiro!

Era uma espada. O súbito seguinte foi dum silêncio aterrador. A espada estava no ar, sangue escorrendo pela lâmina, e a cabeça rolando pelo chão.

- E ela nem soube se a espada é japonesa ou não!
- Preciso de mais um voluntário, por gentileza.

Claro que ninguém se ofereceu. Estavam em dúvida sobre o que acabavam de ver. Nisso um dos presentes juntou a cabeça do chão e a apoiou na palma da mão. Não estava entendo aquilo, e fitou muito seriamente aquilo que há pouco estivera grudado no pescoço de alguém.

- Diga algo, por favor! – pedia o Sr. Dengue.
- Ser ou não ser, eis a questão!
- Não é original, mas serve.

E a espada mais uma vez pairou no ar, o sangue escorrendo. Daí as pessoas começaram a desconfiar que algo não estivesse muito bem. Na dúvida, alguns se afastaram para os cantos. Houve quem pensou em sair da sala, mas o Sr. Dengue estava próximo da porta. Então, melhor esperar.

- Outro voluntário!
- Sr. Dengue, me permite?
- Claro, quer ser o próximo?
- Depois. Agora eu só quero saber se é para perder a cabeça também?
- Claro que é! Todos vão perder a cabeça hoje. Ei, não é engraçado? Alguém aí nunca perdeu a cabeça?

Timidamente dois ou três levantaram a mão. Um deles, o que estava mais próximo, perdeu a mão junto com a cabeça. Aí o pânico finalmente se instalou. Uma gritava histérica.

- Tá gritando muito mal. Melhora isso!

Melhorou.

- Agora pode perder a cabeça.

Lá fora o boi continuava a mugir, vez por outra. Ali dentro, ninguém sabia o que fazer. As cabeças rolavam. O sangue banhava o chão.

- Que nojo!

Era o Sr. Dengue. Ele tinha problemas no estômago quando via sangue. Pelos cantos as pessoas tentavam uma explicação para aquilo. Um chorava por ter matado o gato da mulher, e não teria tempo de pedir perdão. Outro lamentava não poder publicar um livro que preparara com tanto carinho e esforço. Outra, que odiava seu irmão, desejava que ele estivesse ali para defendê-la. Uns ficavam mudos, perplexos. Enquanto isso...

- Preciso de mais voluntários, por gentileza!

Ficou um jogo de empurra-empurra. Mas as cabeças continuavam a rolar. Num dos cantos uma surpresa: teve uma que soltou um palavrão. Ela nunca tivera coragem de dizer um. Disse-o, pois julgava que ninguém sobreviveria àquilo. Então, ninguém saberia. Foi então, claro que depois de mais cabeças e do boi mugir lá fora, que alguém tentou conversar com o Sr. Dengue.

- Sr. Dengue!
- Pois não!

Sempre educado e prestativo.

- Talvez possamos conversar. Talvez o Sr. precise conversar com alguém. Que acha?
- É aquela conversa sobre eu ter sido um menino mal amado?

Conversa rápida. Cabeça rolada.

- Dorotéia!
- Quem é Dorotéia?
- É a mulher que eu amo! E nem vou ter tempo de dizer isso a ela. Dorotéia, tu me traiu, mas eu te amo, eu preciso de ti! Dorotéia!
- Ai, meu ipê! A natureza vai perder se eu morrer. Eu preciso plantar meus ipês!
- Eu preferia enfrentar um ventuim. Não! Eu preferia enfrentar um ventuão!
- Eu preferia que as traças me comessem, elas que comeram os meus livros. Elas têm cultura, eu sei disso. Morreria feliz.
- Ele não pode fazer isso! Ainda se não houvesse elevador parado no mesmo...
- Isso de cortar todo mundo com uma espada é coisa de machista. Olha só o símbolo. Não respeita nem as mulheres.

E as lamúrias prosseguiam. E teve uma que mijou num dos cantos da sala. E a urina se misturava ao sangue, e o Sr. Dengue já estava quase vomitando. Noutro canto, outro improvisava um jogo de palitinhos.

- Nunca tive um jogo de palitinhos. Meus pais nunca me deram um.

De repente houve um alívio. A espada estava apontada para baixo. Teria acabado?

- Alguém poderia bater uma foto minha?

Temeroso, alguém se aproximou, bateu a foto. Talvez isso o acalmasse. Talvez houvesse acabado. Talvez, e foi mais uma rolando pelo chão.

- Quero que todos saibam que eu sou a-ssassino. Entenderam? A tracinho sassino. Quer dizer, eu estou por fora. Aprendi isso outro dia. Onde foi mesmo? Bom, o que eu quero dizer, é que eu não sou um assassino. Mas um a-, ah, acho que vocês não conseguem entender isso!

Espada, espada, o boi mugia lá fora. O desespero era pouco agora, o que era bom, pois tudo parecia mais calmo. É claro que quase todas as cabeças já estavam no chão, olhos arregalados.

- Eu suspeitei desse sujeito desde que ele entrou na sala. Todos são suspeitos!
- Eu já ouvi falar de maluco que entra em cinema atirando na tela. Mas assim...
- E eu que não tive tempo de contar pro meu marido que uma árvore saiu do lugar e bateu no carro dele...

Nisso entrou o moço do cafezinho. Gentilmente o Sr. Dengue o ajudou a entrar, ajeitar tudo sobre a mesa, e depois lhe cortou a cabeça. Esse nem soube o que havia ali. Não teve graça. E o boi mugia.

- Preciso achar esse boi. Olé!
- Viu, eu não disse que é uma espada de toureiro?
- Acho que não é!

Já cansado, o Sr. Dengue cortou as últimas cabeças. Quer dizer, teve um, o palestrante, que ele não cortou a cabeça. Apenas lhe traspassou a espada nas vísceras. Queria fazer diferente, uma outra estética. Ele caiu e ficou gemendo. Satisfeito, o Sr. Dengue resolveu se retirar. Antes teve um enjôo e vomitou ali mesmo. Se soubesse e pudesse, vomitaria na latrina de Duchamp. Era demais para ele ver todo aquele sangue.

- Ah, se eu acho esse boi!

Minutos depois alguém apareceu e viu aquele espetáculo sangrento. Era o Sr. Eliseu. Quase desmaia, mas tomou coragem e viu que havia um com a cabeça e que ainda respirava. Tentou anima-lo.

- Fique calmo! Eu vou chamar ajuda.
- Não me deixe sozinho, por favor!
- Mas...
- Eu não vou agüentar. Me dá um relógio.
- Um relógio?
- Rápido, não tenho muito tempo.

Então, o Sr. Eliseu lhe deu o próprio relógio. O moribundo olhou muito decididamente para os ponteiros. Ficou olhando para o tempo que lhe restava de vida. Quando parou de respirar, podiam-se ver seus olhos brilhando.

O Sr. Dengue desceu as escadas, se foi, ninguém sabe para onde. Na verdade, ele não tinha muita certeza se existia ou não. Enquanto isso, na janela daquela sala, um papagaio pousava e soltava o seu mugido.

Moral da história: A dengue pode matar.

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

o poeta azul
reporta um ipê solar
busca na febre o que é o outro
o perdão de futuros roubos
desconhecido familiar
a veemência de chamar o tempo
lapidar um robusto cristal
lazer para o fim dos tempos
uma fluída paixão
virtudes em delações daninhas
em candeeiros jazendo inflamados
a juventude das idéias torpes
amor, falência e danação
surgir como carrasco arcanjo
de quem se imola em devoção as formas
e na falta de pacífica sombra
rivalizar com o sol
um poema não quebra pedras
nem restitui espíritos malogrados
não cura taras, vícios nem credos
não faz ressurgir uma criança
o poema, além de um desvio
é um testamento de defuntas preces
onde assumi-mos diante das feras
a conseqüência de um olhar

Douglas König de Oliveira.
poema neo-dadaísta ultra (pós-moderno)³


batatinha quando nasce
esparrama pelo chão
a menina que namora
não

Douglas König de Oliveira

sábado, 16 de agosto de 2008

Ilusão

Que mais poderia fazer? Não se perguntava, sequer pensava na possibilidade de se interrogar sobre o que fazia. Vazia seria a palavra possível para aquilo que lhe ocorria. Corria às compras, numa alucinante tentativa de satisfazer algo, nem sabendo do próprio vazio. Tudo, quase, observava, pegava, mexia, iludia-se. Que prazer era aquele? Deveria se perguntar, mas estava longe de chegar nisso.

Satisfazia-se com as cores, os odores, e escondia seus pavores, tão bem escondidos que ele nem mais desconfiava que existissem. Enchia o carrinho e, súbito, sentia a angústia se aproximando. Era o momento de ir ao caixa, passar as mercadorias todas, esquecer aqueles corredores de ilusões, pagar, e nem se importava com a conta estourada do cartão, ir embora. Era sempre assim.
m

sábado, 9 de agosto de 2008

O tabelionato 2008

um ano se passou e voltamos a esquentar o braseiro das palavras ajoelhados e entoando nossas canções. O mestre atiça os corações para que mente e alma se protejem na hora da forja. Aos poucos, voltamos a nos conhecer e dividir o fruto de nossa arte.