domingo, 29 de março de 2009

Ofegante, depois de alguns dias observando as águas, ele chega e conta sobre Pai-Feroz. Os tempos difíceis voltaram. Era o momento de se mudar e em movimento todos sentiam-se expostos a um perigo imediato.
A questão foi levada ao pai mestre que declarou não só importante a mudança, como também uma necessidade, um bem para todos.
Não foi a primeira daquelas famílias, daquele povo. Alguns avós e bisavós presenciaram a disciplina devastadora das lágrimas de Tubanharõ. Tempos de fartura, tempos difíceis. A morte vinha galopando pelos campos, enchendo de lágrimas os lares. Depois da mudança, a fome, um novo curso, uma nova vida.
aos homens cabia levar a lenha, as peles, os mais velhos e a comida que pudessem carregar. Às mulheres, as crianças. Aos mais velhos a fogueira e o alimento para o espírito. Às crianças, uma realidade sólida como rocha, áspera como tronco, fria como Pai-Feroz. A marcha de sol-a-sol, as manchas de morte intercalavam-se com flores de luz, luar azul, verde jardim, nascer curumim.
Do alto do morro, um passo antes de perder de vista o trajeto, o povo do Rio sentou-se e esperou não um ou dois dias, mas quarenta luas. Tubanharõ se mostrou e como águia, abriu suas asas. O Sol resplandia no corpo de prata enquanto, violento, desbravava as matas. E ao ver os homens seus filhos na ponta do desfiladeiro, parece que como um sorriso de prata foi dando, abrindo seus rios, cruzando sem medo a imensidão verde-mata que o céu refletido chovia.

quinta-feira, 26 de março de 2009

Mergulho


O maiô era largo, cabia toda a bunda. De um magazine antigo, já falido, tinha um corte que não se acerta mais. O tecido grosso como pele de sereia. Gosto muito dessa roupa, como era quando nova. Cabendo dentro dele me encaixo em algo desaprendido. Minha roupa de mergulho. Gente espalhada em volta do edifício, sem nada melhor. Minha touca franzida protege a nuca do frio, do resto não. O prédio vai abaixo hoje. No terraço não tem água pra espelhar o céu, nenhuma lâmpada viva nos quartos. Ninguém pra nos segurar.

- Não tem vergonha dessa gente agora?
- Vergonha? Pode ficar com toda pra você.

Ela era mais velha do que parecia, com olhos tecidos de angustias. Uma roupa de banho cheia de manchas, démodé. No dia da implosão desfilou no parapeito, um passo atrás do vão, ainda segura e graciosa. Digo mesmo bonita. Não fiquei até o fim da confusão pra comprar jornais. Os de domingo são mais concorridos, e trago logo três. Saberei se algo acontecer no dia seguinte, nas novas do papel. Dos motivos em algum canto de página, do nome e das lesões.

- Se eu mergulhar e não voltar?
- Sentirei saudades.


Não sabia dela partida ao meio, que estava grávida. Nem notei nas roupas justas vestígios de alguém surgindo. Éramos vizinhas, mas sem amizade. Lembro seu olhar e de alguns cumprimentos, parecendo feliz. Guardo uma ocasião estranha, percebida num instantâneo, dias antes do mergulho. Uma dança solitária pela moldura da parede, pelos espaços roucos da casa. Espasmo íntimo que me censuro testemunhar, que conto nessas letras pra não lerem. Espelho escondido no escuro.

- Temos algo que nos preocupar juntos agora.
- Se vingar, teremos.


Ela não reclamava em ficar sozinha. Talvez pela euforia de eu voltar, pela liberdade temporária. Ou algo que não sei. Se despedia contente e pedia noticias diárias, me exigia presente da sua forma. Mantinha a casa limpa, nossa cama asseada. Quando voltava nada havia acontecido, nenhum equipamento estragado. Nenhuma fissura na vida, nenhuma cárie. As cercas-vivas bem cuidadas protegiam algum pátio cordial, de um sol equilibrista, um delicado exílio. Talvez nunca a tenha tocado de verdade, e não reclamava por nada mudar em eu estar ali.


- Às vezes, quando volta das viagens, você continua distante.
- Eu nunca volto.


Não sinto medo desse vão. Um passo e sepulto você em mim. Roupa de banho, um dia sem sol. O prédio apagado. Ninguém me viu da rua ou parou pra reparar. Nosso filho não teve os dias do prédio, a erosão diária e os músculos tensos. Os olhos abertos, gostos e pêlos crescidos. Uma vida pra desperdiçar. Meus pés inchados, as veias azuladas, a pele rachando numa espera. Aproveito o concreto caindo justo, os ferros empoeirados e a desordem marcada no lugar. Me visto de um sonho torcido, rosário de mortos. Desço sem lembrar de você, sem ligar o que gritam, desistindo no ar. Arrumo a touca.

terça-feira, 24 de março de 2009

microcontos: sobre seres escuros



fiz um vudu com meu sangue. vou colocá-lo no alto da estante. espero que ele caia.


ele diz que em minha pele preta o preto não combina.


sentado sobre mim com os cabelos compridos caindo no meu rosto, sua silhueta se parece com a de uma mulher. o pau pulsante dentro de mim não me deixa enganar.


vou sequestrá, estuprá-la com meus dedos, arrancar seus seios fartos e depois chupá-los. em seguida, vou afogá-la com seu sangue. espero que ela morra.


ele olha para mim com um olhar cúmplice e diz que começará a andar com os dentes à mostra, assim será visto. eu sorrio.


será que ela gemia? com certeza. elas são pagas para isso.


surpreendi um estupro. me ofereci em troca da criança. o estuprador não quis e continuou a fuder a pequena. senti inveja.


uma prostituta foi encontrada morta num quarto de hotel. morreu engasgada.


em dias de tempestade, brinco de roleta-russa com os raios: subo em cada árvore que vejo e espero.


na falta de lubrificação, ele escarrou na minha buceta. achei nojento, mas trepei mesmo assim. 40 reais são 40 reais.


o bebê não parava de chorar. joguei ele no chão. ele parou.

sexta-feira, 20 de março de 2009

O Corpo Ainda É Escuro


-Microcontos-


A dor é da cama, sem sustentação. O corpo em queda, doença parada dos olhos. O corte da pele do lençol não cicatriza.


Despediu-se sem saber que o afeto poupado lhe faltaria.


Nascemos gêmeos, idênticos. Hoje não somos nem parecidos.


Quando recortei a cara do bebê, cuidadoso, pude ver a engrenagem do seu sorriso que funcionava ainda sem saber da dor.


Fausto não dormiu naquela noite, desconfiado do cachorro que viu tudo.


Na última doença minha tia falou: agora é que não aprendo a pular corda.


Um escritor moreno descreve a sombra sem nem desconfiar do objeto.


Vivian pergunta sem me olhar nos olhos: - Vai demorar muito pra acabar?


A música se hospedava no seu ouvido vazio.




Douglas König de Oliveira

quarta-feira, 18 de março de 2009

Crônicas De Um Velho Que Morreu Lúcido.


-Microcontos-


Voltei e permanecia morna.


Das portas lá de casa a do banheiro é mais necessária.


Era engraçado, mas ao próximo que entrar no elevador só eu sabia o que iria acontecer.


Quando avisei pro meu filho que iria morrer resistiu enquanto pode. Ele nunca me obedecia.


Não paravam de comentar quando o padre engravidou.


As amigas se decepcionaram quando, no seu terceiro casamento, Suzana resolveu ficar com o buquê.


Depois que Dona Dulce morreu na missa mais bancos ficam vazios.


Um pouco enciumada permitiu que Seu Rubens, o “Ratinho”, fosse velado na gafieira.


Enquanto subia a escada do edifício despida sentiu seus seios tão rijos quanto antigamente.


Os amigos se revoltaram quando não fez no braço uma tatuagem de índio, e sim do John Wayne.




escrito por Douglas König de Oliveira

sábado, 14 de março de 2009

a forja.



Novamente os forjadores de palavras se encontram e, a cada encontro, uma surpresa. Assassinato de crianças, vômitos inesperados, as paisagens que passam pelos olhos de uma senhora que acaba de ver seu marido detestável morto. Personagens que ganham vida. A brasa está no ponto da forja e o Tabelionato novamente abre suas portas enquanto as palavras se misturam em pensamento.

segunda-feira, 9 de março de 2009

Curso de formação de escritores - 3ª edição

A partir de 13 de março inicia-se mais um curso de formação de escritores. A certeza de que muitos forjadores do Tabelionato estarão presentes neste curso e que, além destes, teremos ainda mais escritores faz com que possamos pensar na importância desse espaço. Três anos, três grupos, entre eles os que foram e os que ficaram.

obrigado àqueles que aí estão e aguardamos juntos os próximos forjadores de palavras.
A quem puder participar, favor enviar até as 23:59 de hoje uma pequena biografia e um texto para marcorodrigues@sesc-sc.com.br .

Um abraço.