quinta-feira, 26 de março de 2009

Mergulho


O maiô era largo, cabia toda a bunda. De um magazine antigo, já falido, tinha um corte que não se acerta mais. O tecido grosso como pele de sereia. Gosto muito dessa roupa, como era quando nova. Cabendo dentro dele me encaixo em algo desaprendido. Minha roupa de mergulho. Gente espalhada em volta do edifício, sem nada melhor. Minha touca franzida protege a nuca do frio, do resto não. O prédio vai abaixo hoje. No terraço não tem água pra espelhar o céu, nenhuma lâmpada viva nos quartos. Ninguém pra nos segurar.

- Não tem vergonha dessa gente agora?
- Vergonha? Pode ficar com toda pra você.

Ela era mais velha do que parecia, com olhos tecidos de angustias. Uma roupa de banho cheia de manchas, démodé. No dia da implosão desfilou no parapeito, um passo atrás do vão, ainda segura e graciosa. Digo mesmo bonita. Não fiquei até o fim da confusão pra comprar jornais. Os de domingo são mais concorridos, e trago logo três. Saberei se algo acontecer no dia seguinte, nas novas do papel. Dos motivos em algum canto de página, do nome e das lesões.

- Se eu mergulhar e não voltar?
- Sentirei saudades.


Não sabia dela partida ao meio, que estava grávida. Nem notei nas roupas justas vestígios de alguém surgindo. Éramos vizinhas, mas sem amizade. Lembro seu olhar e de alguns cumprimentos, parecendo feliz. Guardo uma ocasião estranha, percebida num instantâneo, dias antes do mergulho. Uma dança solitária pela moldura da parede, pelos espaços roucos da casa. Espasmo íntimo que me censuro testemunhar, que conto nessas letras pra não lerem. Espelho escondido no escuro.

- Temos algo que nos preocupar juntos agora.
- Se vingar, teremos.


Ela não reclamava em ficar sozinha. Talvez pela euforia de eu voltar, pela liberdade temporária. Ou algo que não sei. Se despedia contente e pedia noticias diárias, me exigia presente da sua forma. Mantinha a casa limpa, nossa cama asseada. Quando voltava nada havia acontecido, nenhum equipamento estragado. Nenhuma fissura na vida, nenhuma cárie. As cercas-vivas bem cuidadas protegiam algum pátio cordial, de um sol equilibrista, um delicado exílio. Talvez nunca a tenha tocado de verdade, e não reclamava por nada mudar em eu estar ali.


- Às vezes, quando volta das viagens, você continua distante.
- Eu nunca volto.


Não sinto medo desse vão. Um passo e sepulto você em mim. Roupa de banho, um dia sem sol. O prédio apagado. Ninguém me viu da rua ou parou pra reparar. Nosso filho não teve os dias do prédio, a erosão diária e os músculos tensos. Os olhos abertos, gostos e pêlos crescidos. Uma vida pra desperdiçar. Meus pés inchados, as veias azuladas, a pele rachando numa espera. Aproveito o concreto caindo justo, os ferros empoeirados e a desordem marcada no lugar. Me visto de um sonho torcido, rosário de mortos. Desço sem lembrar de você, sem ligar o que gritam, desistindo no ar. Arrumo a touca.

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