sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Carência

Desceu a rua despreocupadamente. Antes, talvez, estivesse distraído. Se perguntassem, não saberia dizer o que pensava naquele momento. Seguia. Talvez estivesse anestesiado por tudo o que ocorrera na véspera. Anos vivera dum jeito que não o deixava contente. "Felicidade?", perguntavam, perguntava respondendo. Não, não acreditava que a tal da felicidade pudesse existir. "Bobagem!"

Adiante viu um casal de namorados, tão próximos, colados, parecendo um só. "Um só..." Era isto que lhe haviam ensinado, ser um só com o seu par. E lhe falaram em mulher ideal, em cara metade, em alma gêmea, e se esqueceram de falar da solidão. Ninguém nunca lhe havia falado em solidão. Era assunto proibido. Parecia mesmo que a tal solidão não existia. E existia!

O casal apaixonado o fez sentir-se carente. "Carência!", quase falou alto, mas conteve-se. Era isso, então. Por causa da carência, do medo da solidão, havia se submetido a uma relação que não poderia continuar. Esquecera-se de viver a sua própria vida. Vivera a vida de outro alguém, mas que também não era a vida desse alguém, a não ser uma suposição, um achar que "era pra ser assim", pois assim lhe haviam ensinado.

O casal apaixonado agora discutia. "Mas o que diabos há com eles?" Ele também já fizera isso. Ah, a vida! Tão contraditória, tão cheia de medos. O que o deixava aliviado, é que agora se sentia livre, e achava que ela devia estar pensando o mesmo. Se não, um dia pensaria.
m

Dois

Dois. O olhar pousou agitado diante do número. Mordiscou os lábios, frenezi, medo, angústia.. o que mais? Dois. Acendeu um cigarro na esperança vã de acalmar-se. Mas calma alguma o traria de volta daquele suplício. Dois. O número girava-lhe na retina, como calendoscópio. O estômago doeu forte, como se tivesse levado uma facada, como se estrebuxasse ali no meio do corredor do hotel. A porta, marrom, maciça, sem detalhe de importância, parada imóvel diante dele. Do outro lado um certo barulho, risadas, ritmos... acendeu outro cigarro.. do nervoso deixou-o cair no carpete vermelho. O suor também caiu pelas temporas. Vontade de esfaquear agora sentia. De enfiar a mão inteira pelas vísceras arrancando-as com os dedos curvados em garra. Sentia as mãos enrubecendo-se do sangue imaginado. Já não era nervoso o que sentia, mas um ódio delicioso e quente de quem deseja matar alguém. O ódio dos assassinos sem culpa. De repente, o dois, feito de metal bronzeado, parou diante dos olhos, fixos, tesos, orgulhosos olhos. Abriu a porta e.....




Um pequeno e breve exercício de escrita.... silv!

domingo, 14 de setembro de 2008

a r e u n i ã o



Nem o sol estendia suas abas flamejando o escuro e já haviam seis ou sete deles ali. Os portões de metal unidos por uma corrente de aço e selados por um cadeado. um vulto humano de capacete amarelado que se aproxima. uma chave não brilha em sua cinta e ele pára em frente ao portão. pequenos sons internos de desespero em meio ao silêncio: um desespero imaginário. o semicírculo de fogo projeta os corpos, o muro imenso, as construções e suas escadas, as chaminés e a sujeira que quase dilui o ar. um ruído grave e contínuo buzina a hora. Barulho de chave, olhos atentos. Os portões são abertos e as pessoas disparam.


adentram a sala


A sala é escura, barulho de água por todos os lados (os pingos, são sempre os pingos e seu barulho que nenhum deles consegue suportar mais, a sala cheia de água podre, corrimento de canos podres), a água cobrindo meio centímetro de altura; um cabideiro de quatro lugares para casacos e chapéus, quatro cadeiras, três pretas, uma vermelha.


Ele chega sério, como sempre. Como sempre,coloca seu chapéu e casaco no cabideiro, senta-se, cumprimenta à todos os membros, primeiro o da direita, depois, o da esquerda com apertos de mão. O outro recebe um aceno. Um, atrasado, está de pé. coloque suas tralhas aí. as mãos tremendo, obedece a ordem dEle sem qualquer hesitação e deposita o casaco e o chapéu no chão. A estrela era por detrás das paredes, não que algum deles pudesse ver ou se interessar no momento. apenas parecia um pensamento assim o silêncio momentâneo.


Marco Aurélio Castro Rodrigues

sábado, 13 de setembro de 2008

passeios



talvez esse momento não exista e não possamos acreditar esperar confiar no dia em que o pensamento será ação isso porque não são os dias e sim pessoas dito assim desse jeito não parece um raciocínio muito difícil e isso porque não é o pensamento está formulado embora a ação não nem pra uns não nem pra outros mas apenas o que precisamos discutir não precisamos e o que precisamos não discutir é uma mancha escondida atrás do armário




as luzes estão apagadas frio chuva o barulho nas escadas o silêncio nada mudo dos outros aposentos barulho das coisas ligadas o barulho dos meus dedos digitando algo que narrativa poema ficção mas que sem nenhum motivo carta manifesto confissão apenas revelam minha inquietude a insanidade que me perturba o meu enjôo o meu peso ou ainda o apenas peso os olhos não sabem o que procurar o corpo está deslocado sem senso de direção enquanto a mente povoada de seres que não (re)conhece concentra-se no nada mais uma vez para nada dizer mas sem saber se para ficar silêncio


Marco Aurélio Castro Rodrigues


adaptação do texto série:passeios
publicado originalmente no site http://soseformais.blogspot.com

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

porta retrato



São inúmeras tendas saindo do vértice da lâmpada. O cone baço é orientado pelo filamento de um coração elétrico, enquanto no escuro entre eles ninguém transita. Dos outros distingo a silhueta e algo que o vento traz de uma tenda a outra, quando é favorável. Toda tarde recebo meu almoço nú, sem o qual anoiteço. Quando a vista arde desvio para longe, para nada. Não estamos sós porque não esperamos ninguém.
Conheço o velho do poste ao lado, que me manda cartas sobre sua vida. Diz que seu casamento é uma lata de sardinhas pornográfica. Já vivi isso também. Sorrio pelo que diz, mas de onde está minha figura não muda. A mulher fez um vestido com folhas de calendário, e guardou os janeiros para o chapéu. Não diz muito, não sei o motivo. Mandou-me pela corrente um retrato de santo, de suas folhinhas de mês. Creio mais nos dias que no santo, mas guardo comigo.
Algumas vezes toca um samba, feito de sirenes, que vem de uma luz distante como memória. É quando a mulher do vestido dança. O velho tenta acompanha-la, desajeitado. Naquele último dia foi quando nos divertimos. Nos outros fomos silêncios acompanhados.
Vemos as faíscas de gente que sobe nos postes, e desdenhando a lição dos pássaros, se incandesce entre os fios. Já bati o crânio também, mas apenas para trocar de dor. Nada acontecia demais, colhíamos das horas a rotina. Mas daquela vez a luz se apagou, depois a paz do lugar. Corríamos como cegos para abraçar alguém.


Douglas König de Oliveira

terça-feira, 9 de setembro de 2008

duas faces



No meio da ponte na cidade azul
a lua resplande no Rio Tubarão
e de lá recolhe
o pouco do tudo pra continuar
cheia de encantamentos
abre todo seu brilho
corre o verde rio
e vai se perder na usina.


Vem às dez da noite o pequeno vagão
as luzes acesas nos trilhos
um ritmo vago
de um tempo perdido de ferro e carvão
corta a cidade
pelo seu coração
segue seu rio
seguido do som da buzina.


Marco Aurélio Castro Rodrigues


postado originalmente no http://soseformais.blogspot.com

domingo, 7 de setembro de 2008

Da casinha



Na noite, espera o claro. Põe-se em alerta quando o galo canta. A vista para a casa vizinha remonta expectativas diárias. Ruídos são eminentes e o trinco da porta não tem mais sentido; o ar é suspenso. A abertura lenta atormenta e acalma. Os olhos agora são imãs. Os pêlos arrepiados fazem moldura para um corpo trêmulo. O sol, então, vai beijando o chão e iluminando os pés daquele que a faz feliz. A barra da calça vai surgindo, conforme os raios tomam conta. Como água que corre, as pernas vão aparecendo em meio à escuridão da qual ele surge. A cinta de couro, num bordô fogueira, apresenta a camisa, hoje marrom fechado. O cenário da aparição diária é tão inédito quanto o de ontem. Os metros de fronteira diminuem gradualmente. O desejo do toque ascende. As passadas dele são largas e firmes. As dela, raras e fortes. A distância quase se anula; parecem levitar no enamoro da cena e surge o auge rotineiro. Pausa.
Apressado, ruma para a garagem, tomando o carro como quem mata a sede. Agora, só o sal do choro dela no chão; a tina pálida com ração, a coleira sem furos, apertada...


Tássia Búrigo

Velado



Com a mão esquerda puxou o jornal, ainda enrolado. Sossegou o noticiário na mesa mínima, enquanto punha os vidros de fazer ver. Tem um bloco de memórias aberto e uma porcelana fininha, branca, com dourados de trinta. Todo café da xícara tomou o corpo do quarto verso...


Tássia Búrigo

sábado, 6 de setembro de 2008

da rotina dos videntes



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A praça central é ampla. Sob a calçada passa a corrente de habitantes, também a vida que está por vir, que esperam. O prédio será belo, imponente. Se acontecer de seus planos ficarem debaixo do concreto duro, que fazer? Não seqüestramos sua luz. Ela é frágil, ilusória, perecível. Negociável. Sou dono de um pedaço do mundo maior que o deles, agora do centro da cidade. Também possuo um bocado de suas vidas, talvez uma fatia de seus olhos. Ou uma vista inteira, sem a qual não vemos em profundidade. Aqueles músicos, que vejo a tanto tempo na lateral da igreja, perderão o seu palco. E se ele soube-se que irá se enamorar daquela, que se afastará da praça, descarrilaria?



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A tanto nesse vão da praça, vendo as pessoas entrarem na igreja. Suponho que já devem estar salvas. Quanto a nós, não sei. Acho mesmo que não nos amamos. Estamos ligados pela dureza da vida, pelas mesmas cicatrizes. E nada ameniza, nem a beleza das canções.


Oricuri
Emoriô
João Donato e João do Vale.


Carinhoso
Beijo Partido
Coração Leviano
Pisa na Fulô.


São nossas marcas, feridas. Somos dois cantores, pobres e inermes. A sombra da catedral nos torna invisíveis. Nossas vozes se tocam, serpenteiam. Mas o corpo se evadiu das bodas, do caduceu. Estamos sem teto, não somos mais casa sem nosso filho. Aquele velho sentado no banco, na praça, adereço como nós. Não parece triste. Uma alegria de pedra, de substância imóvel. A boina vermelha que me identifica, artista, está puída. Tenho que tecer outra. Preciso de algumas novas, tecidos diferentes, confortáveis. O homem da praça vai voltar para casa, pra mulher. Irá ver a porta ainda aberta. Será corrompida sua alegria de pedra, sua paz?



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Venho mais uma vez a praça. Saí do escritório tonta, sonâmbula. Meu banco está ocupado por outros. Me sinto desrespeitada, ainda que nada seja meu. Queria poder segurar um pedaço, uma fatia de tudo que por hora acaba, para guardar comigo no caso de ninguém chegar. Te envolver em uma casca que não chocaria. Te manter aquecido no meu hálito, preso numa câmara sem portas, minha. Gosto da praça, do rasgo em que o céu aparece, da movimentação. Estar aqui me deixa segura. Sei ao menos que a praça não vai acabar. Conheço de cor o repertorio dos cantores, os produtos dos feirantes, os livros que deixam pra trocar. Alguns estão ali desde tanto que até me esqueço. Olho os pombos. Será que são sempre os mesmos? Me despeço de ti numa foto, pra parar o tempo precioso que fomos. Hoje qualquer canção me comove, como a última luz da estação mais viva. A verdade é que seu filho não vai voltar. Debaixo da boina vermelha, desbotada, saberia de um caminho como o do leiteiro, que morreu inocente, alvejado na madrugada.



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Dou voltas na cidade, me enovelo, mas acabo sempre aqui. Paro com os joelhos doídos e percebo ninguém do meu lado. Ainda não me acostumei. Sinto o som dos seus comentários, como fazendo vibrar o ar em minha direção. Talvez despojos da memória que ainda insisto em lustrar. Sigo nossos passos na calçada, os rastros dos nossos encontros antes de ficarmos juntos. Ainda te perco, a cada dia um pedaço. Quem nos falou desse trato, dessa forquilha insana? As gerações na praça me consolam, me ajudam a entender. Vejo uma moça atenta a música, que parece trespassá-la. Porque não anda, se esquiva da dor? O que expurga nesse choro seco? Se lhe conta-se do retorno, de suas outras chances, deixaria a poeira, a erosão lhe tomar?



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Ainda me grito: Atraiçoado! Me encosto no banco. Estou sob o céu, e só. A terra seca sabe do fato, me agride e me toma o peito. Despeja minha alma no passeio e me exige pescar. Sou vegetal rude, castigado. Sai dos infernos pra não matar quem me amou. O frio mais intenso foi o meu calor, sozinho. Atraiçoado. Daquela aventura ficou o bocado que me amarga a língua, perene. Não desses razão pra que tu fizeste. Me sento na praça e vejo meu lar. Flutuam calçadas, entortam os postes, reviram as gentes pra não me obstruir. Avisto o casamento, jubiloso instrumento pra resistir a seca, para um deserto coração. Revejo a casa, o cheiro dos filhos, paragem agreste onde era feliz. Insisto em seu rosto, nos poros, nas sardas. Seu mapa inteiro ainda guardo. Meu rosto parado não chama atenção, como quem sabe que não choverá, tão cedo. Espero a balança pender para um lado. Um vento macio sai do prato direto. Uma lâmina azulada do prato esquerdo. Se fico feliz é porque me iludo, procuro algo além do que sou: Castrado. Aquela senhora parece absorta, pacífica. Passeia num cemitério de emanações. Não sabe da sorte, do seu desabrigo. Não sabe da morte, do dia de não estar, da lâmina apontada para o seu umbigo.



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Meu canto está dolorido, como garganta inflamada, perdida. Do sorriso que dou para Selma não extraio alegria. Apenas os sons que se curvam na boca, que raspam nos dentes, se orientam na língua e saem, libertos. Mostro o cansaço de ficar nessa raia, aos olhos de alguns e suas bondades. Sou injusto em pensar que não estamos mais juntos. Ela está, não tenho dúvidas, em mim. Cantamos na praça depois de desaparecido nosso filho. Perdemos o prumo, a bússola tenra, os pontos cardeais. Ficamos parados, como quem se perde em uma feira, pra ele nos achar. Não sei de quem é a culpa se o afeto secou. Vivemos das cascas. Se vejo uma moça bela e jovem se emocionar com o que canto, me preparo pra fugir. Não sei se consigo, deixar a mulher e o filho ausente pra trás. Se sei daquele janota que porá em silencio o lugar não conto a mim mesmo. Pois cresce a coragem de botar em curso a vontade que eu não quero ter. Ensaio os sorrisos, os quantos mais for possível, pra combater a maldade que faria em te deixar. E canto. Lembro e saúdo aquilo que faziam na praça, que acendia o lugar: uma cesta de frutas, um bom livro, intacto, um solo de clarineta.




Douglas König de Oliveira

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Elevações

Você acha que sabe como me sinto, e finge entender minha situação, minha falta de perspectiva, minha agonia interior, meus distúrbios emocionais, mas a verdade é que você não faz idéia do que é ter consciência de si mesmo. Às vezes, essa consciência vem tão forte e reveladora, que chega a doer fisicamente, me levando a querer me punir, me flagelar, e às vezes, me levando a fazer isto de fato. Então, você me vê, e me manda um sorriso forçadamente terno, tentando de alguma forma camuflar o seu verdadeiro conceito sobre mim, a sua agonia em me ter por perto e principalmente o medo da suposta força adversária que represento pra você.

Você diz que não sabe como consigo ser tão auto-destrutiva. Não existe mais o que destruir. Você escuta isso, e diz que sou exagerada e ingrata com Deus, a vida, o cósmo e sei lá mais quem. Gratidão é algo que não se sente por obrigação ou conveniência. Sente-se por reconhecimento de algo bom.

Você diz que sou tão triste, que meu olhar é sempre vago e distante. Então, você se aproxima de mim e tenta me dar algum prazer sexual, como se dessa forma eu/você pudesse manter meu corpo ocupado em sentir o seu. Mas, nem sempre eu sinto. Às vezes, não te sinto dentro de mim. Estou tão compenetrada em me imaginar num plano superior que simplesmente não te sinto. Então, olho para o teto de algum quarto qualquer, na esperança de que ele se abra e algo de bom me seja mostrado dos céus. Isso nunca acontece. Volto a mim, e o único movimento que percebo é do seu corpo tentando entrar cada vez mais no meu.

Minha apatia te frustra. Sua esperança em tentar conseguir o melhor de mim me deprime.

(Escrito em 28/02/2007)

Inoperância

O que sou quando penso em mim?
O que vejo quando me avalio,
Pesando prós e contras
De um ser contrariado
E em si mesmo abandonado?

Confusão..
Perdição...
Solidão...
Me encontro envolta em lugares inóspitos,
Grotas imundas no meu ser cavocadas.

Lamentações tornaram-se desleais.
Chorar já não é suficiente.
Sufocar-me não mais consola.
Desertar de meu ser é ineficaz,
Porém necessário.

Um canto à vida,
Cortejado pela morte
Na alma estampada.

(Escrito em 01/06/2003)

manicômio de sãos

indignado ser, que grita e sapateia
sobre estandartes um dia erguidos veementes...
baixai a tua bola, calai a tua boca
deixai os lunáticos dançarem nus em plena praça

o que foi, não volta
o que está aqui, não muda

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Eliseu



Meu vizinho Eliseu sempre nos conta da época em que trabalhava num cinema, onde era projetista. Diz que foi o melhor trabalho que já teve e fala dos inúmeros filmes que, de tanto passar para os outros, ficaram tatuados na sua mente. Ainda guarda alguns cartazes desses tempos em sua casa, e volumes de historias sobre cada um deles, de suas glórias. Mas ele se emociona mesmo quando conta um episódio sinistro que o fez largar a profissão:
A sessão estava um pouco vazia e já ia a metade do filme. Entra um jovem vagarosamente e vai até a primeira fileira, onde não havia ninguém. Observa o filme distraidamente, olha os cantos, tenta reconhecer alguém no lusco-fusco da sala.
A platéia atenta ao drama da tela não desconfia. Da sala de projeção Eliseu vê um movimento abrupto do jovem e seu coração dispara, não cabe no peito. Ele retira um revolver da roupa e aponta para a platéia. O som das ameaças não chegava a cabine de projeção. Eliseu vê a cena como um filme mudo, como um Buster Keaton bélico e enfurecido.
A platéia é rendida e inicia um macabro jogo de cena. O jovem começa a dirigir as pessoas em situações fictícias, como um diretor de cinema. Numa rápida conversa parece escolher um episódio com a vítima, algum que lhe tenha um significado especial. Baliza o cenário e começa a cena. Da sala Eliseu começa a reconhecer , dentre os tantos filmes que já vira, aspectos familiares nas atuações.
O primeiro representa o absurdo de não conseguir sair de uma sala, sem que haja nenhum motivo claro para isso. Se descabela, rasga um pouco a roupa e simula, ou não, um rosto perplexo. Ao terminar a cena se dirige de volta a cadeira, mas é alvejado nas costas e cai, morto. O anjo exterminador ainda não havia dado o seu indulto.
O próximo imita o olhar vazio de Alain Delon no eclipse de Antonioni. Se desloca geometricamente pelo espaço, move-se insólito com uma Mônica Vitti de corpo ausente. Ao final, como no filme, a cena transcorre sem nenhum personagem.
Vendo o inevitável abismo da situação as interpretações começavam estranhamente a ficarem melhores. Talvez pensassem que esse último ato poderia ser digno, talvez até de crítica. Surgiram gladiadores ferozes, Quixotes convictos e até um Zorro.
Um que interpretou o fim de Charles Foster Kane nem quis levantar após pronunciar o seu “Rosebud”. Ficou deitado esperando a morte ser reiterada. Outro reclamou que havia apenas uma arma para reproduzir a chacina de Bonnie e Clyde. Um senhor de bigodes quis virar Charles Bronson, ainda que de mãos vazias, num duelo de Sergio Leone. Pôde-se ver mesmo um esboço de sorriso quando caiu no chão desértico dos faroestes, na verdade o piso de madeira do velho cinema. Houve ainda um perfeito imitador de Peter Sellers, que conseguiu a simpatia até mesmo do jovem algoz. Pena ter descoberto seu talento em ocasião tão crepuscular.
Apenas uma velha senhora foi poupada. Dançando em seu ritmo frágil, como que imaginando uma orquestra que acompanha-se seus anos, criava um Fred Astaire galante na cena, em seus olhos. Além disso, o seu filme já estava chegando aos créditos finais.
Depois das inúmeras cenas interpretadas pelos atores terminais o jovem parecia satisfeito. Talvez com seu personagem, talvez por tudo aquilo operado por ele parecer uma ficção. Então, antes de sair, aponta a arma para a tela e dispara. Atinge o ombro direito de Marlon Brando. Sua cúmplice na tela, a espera de um último tango, terminaria o serviço. A luz da projeção, por entre a poeira mexida, revelava os corpos espalhados pelo chão como os russos na escadaria de Odessa.
Perguntamos ao Eliseu o por que dele não ajudar, não chamar a policia? Ele lança um olhar lacônico, como que nos condenando por querer saber demais. Perguntamos quantas balas o jovem tinha, se foi pego após o ocorrido? Ele não nos responde, não quer responder. Seus olhos úmidos impõem o respeito necessário após o alumbramento.
As vezes dá muita vontade de acreditar nas histórias do Eliseu.


Douglas König de Oliveira


da esfera polida
que contêm os fluxos
do trafego intestino
sob o alicerce das memórias
da erosão batente
da alma mineral e fria
a vaga naufraga
não encontra o local de quebrar
de torcer seu dorso pesado
no descanso elísio
o que fecunda o homem
grávido de felicidade,
triste


para João Cabral, amigo

Douglas König de Oliveira

Pedro e Plácido



Ainda me entristece o que foi acontecer a Pedro Romano. De onde veio meu vaticínio quando o vi pela penúltima vez? Jovem robusto, bem forjado pela natureza, que também lhe deu instintos de mansa escuridão. Na paisagem das coisas que falava tirei meu alimento naqueles anos. Pensei ser feliz consigo, com a tessitura de sua pele em minhas mãos, desgraçadamente juntos. Lembro da vida medida por ele: quantas vezes se ia da mais alta nuvem ao precipício. Se isso valia a paragem nesse extinto fruto de contentamento, em seus dias.
A poucos anos nascia-mos. Tentávamos descobrir algo a descortinar, exibir seus raios em nossa fronte. Da cor dos velhos já sabíamos, de atender na venda, das suas necessidades. Nas folgas nos perdíamos no casarão, com a negra de seios grandes, quando o corpo voltava a nascer. Nesse trecho foi nossa mãe. Naquele momento que roçou seu dedos no meu ouvido, envoltos em santa luxuria, os três, foi na minha orelha que buscou conforto. Embaralhava-mos cartas em chamas. Acolhi a sua brutalidade como peça frágil, e em cacos, devoto. Assim me obteve de resto.
Nunca fui feliz sem ele. Reconheço sua imagem nos sorrisos das fotografias em que apareço. É a presença dele entre minhas gengivas, meu motivo, minha canção. Mas eis que surge uma sombra peçonha. Sereia rouca que o seduziu, o afundou na maré. Não pude protegê-lo. Meu exercício de gestos ficou congelado, tristeza em mármore, desilusão. Da perfeição de sua lembrança foi morta a raiz, e o narciso foi cortado em botão.
Agora vejo sua carne estendida, inanimada. Sob o pano o recorte da face, eterno horizonte. Meu sol que se põe pela ultima vez. Engredo as mãos em seus cabelos. Sinto a ponta de suas unhas por cortar, que continuam a crescer sem fazer barulho, como réquiem de um destino final, comum. Olho a sala vazia e adentro seu dormitório unitário, por sobre seu peito gelado. Abraço-me a ele como vivo, meu amor. Beijo suas pálpebras sob os olhos vítreos, imagino suas lágrimas, talvez por mim em seu lugar. Me lembro o que dizia pra fazer rir de meu nome:

- Lá vem o Plácido, tempestuoso...

Ele não morreu.







à Lúcio Cardoso, que não morreu de malária
e Raduan Nassar, exilado da cólera

Douglas König de Oliveira