sexta-feira, 12 de setembro de 2008

porta retrato



São inúmeras tendas saindo do vértice da lâmpada. O cone baço é orientado pelo filamento de um coração elétrico, enquanto no escuro entre eles ninguém transita. Dos outros distingo a silhueta e algo que o vento traz de uma tenda a outra, quando é favorável. Toda tarde recebo meu almoço nú, sem o qual anoiteço. Quando a vista arde desvio para longe, para nada. Não estamos sós porque não esperamos ninguém.
Conheço o velho do poste ao lado, que me manda cartas sobre sua vida. Diz que seu casamento é uma lata de sardinhas pornográfica. Já vivi isso também. Sorrio pelo que diz, mas de onde está minha figura não muda. A mulher fez um vestido com folhas de calendário, e guardou os janeiros para o chapéu. Não diz muito, não sei o motivo. Mandou-me pela corrente um retrato de santo, de suas folhinhas de mês. Creio mais nos dias que no santo, mas guardo comigo.
Algumas vezes toca um samba, feito de sirenes, que vem de uma luz distante como memória. É quando a mulher do vestido dança. O velho tenta acompanha-la, desajeitado. Naquele último dia foi quando nos divertimos. Nos outros fomos silêncios acompanhados.
Vemos as faíscas de gente que sobe nos postes, e desdenhando a lição dos pássaros, se incandesce entre os fios. Já bati o crânio também, mas apenas para trocar de dor. Nada acontecia demais, colhíamos das horas a rotina. Mas daquela vez a luz se apagou, depois a paz do lugar. Corríamos como cegos para abraçar alguém.


Douglas König de Oliveira

Um comentário:

Sheyla Fernandes disse...

"A mulher fez um vestido com folhas de calendário, e guardou os janeiros para o chapéu".
Gostei da idéia. Dos dezembros, eu faria sandálias.

Um abraço!