sábado, 6 de setembro de 2008

da rotina dos videntes



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A praça central é ampla. Sob a calçada passa a corrente de habitantes, também a vida que está por vir, que esperam. O prédio será belo, imponente. Se acontecer de seus planos ficarem debaixo do concreto duro, que fazer? Não seqüestramos sua luz. Ela é frágil, ilusória, perecível. Negociável. Sou dono de um pedaço do mundo maior que o deles, agora do centro da cidade. Também possuo um bocado de suas vidas, talvez uma fatia de seus olhos. Ou uma vista inteira, sem a qual não vemos em profundidade. Aqueles músicos, que vejo a tanto tempo na lateral da igreja, perderão o seu palco. E se ele soube-se que irá se enamorar daquela, que se afastará da praça, descarrilaria?



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A tanto nesse vão da praça, vendo as pessoas entrarem na igreja. Suponho que já devem estar salvas. Quanto a nós, não sei. Acho mesmo que não nos amamos. Estamos ligados pela dureza da vida, pelas mesmas cicatrizes. E nada ameniza, nem a beleza das canções.


Oricuri
Emoriô
João Donato e João do Vale.


Carinhoso
Beijo Partido
Coração Leviano
Pisa na Fulô.


São nossas marcas, feridas. Somos dois cantores, pobres e inermes. A sombra da catedral nos torna invisíveis. Nossas vozes se tocam, serpenteiam. Mas o corpo se evadiu das bodas, do caduceu. Estamos sem teto, não somos mais casa sem nosso filho. Aquele velho sentado no banco, na praça, adereço como nós. Não parece triste. Uma alegria de pedra, de substância imóvel. A boina vermelha que me identifica, artista, está puída. Tenho que tecer outra. Preciso de algumas novas, tecidos diferentes, confortáveis. O homem da praça vai voltar para casa, pra mulher. Irá ver a porta ainda aberta. Será corrompida sua alegria de pedra, sua paz?



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Venho mais uma vez a praça. Saí do escritório tonta, sonâmbula. Meu banco está ocupado por outros. Me sinto desrespeitada, ainda que nada seja meu. Queria poder segurar um pedaço, uma fatia de tudo que por hora acaba, para guardar comigo no caso de ninguém chegar. Te envolver em uma casca que não chocaria. Te manter aquecido no meu hálito, preso numa câmara sem portas, minha. Gosto da praça, do rasgo em que o céu aparece, da movimentação. Estar aqui me deixa segura. Sei ao menos que a praça não vai acabar. Conheço de cor o repertorio dos cantores, os produtos dos feirantes, os livros que deixam pra trocar. Alguns estão ali desde tanto que até me esqueço. Olho os pombos. Será que são sempre os mesmos? Me despeço de ti numa foto, pra parar o tempo precioso que fomos. Hoje qualquer canção me comove, como a última luz da estação mais viva. A verdade é que seu filho não vai voltar. Debaixo da boina vermelha, desbotada, saberia de um caminho como o do leiteiro, que morreu inocente, alvejado na madrugada.



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Dou voltas na cidade, me enovelo, mas acabo sempre aqui. Paro com os joelhos doídos e percebo ninguém do meu lado. Ainda não me acostumei. Sinto o som dos seus comentários, como fazendo vibrar o ar em minha direção. Talvez despojos da memória que ainda insisto em lustrar. Sigo nossos passos na calçada, os rastros dos nossos encontros antes de ficarmos juntos. Ainda te perco, a cada dia um pedaço. Quem nos falou desse trato, dessa forquilha insana? As gerações na praça me consolam, me ajudam a entender. Vejo uma moça atenta a música, que parece trespassá-la. Porque não anda, se esquiva da dor? O que expurga nesse choro seco? Se lhe conta-se do retorno, de suas outras chances, deixaria a poeira, a erosão lhe tomar?



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Ainda me grito: Atraiçoado! Me encosto no banco. Estou sob o céu, e só. A terra seca sabe do fato, me agride e me toma o peito. Despeja minha alma no passeio e me exige pescar. Sou vegetal rude, castigado. Sai dos infernos pra não matar quem me amou. O frio mais intenso foi o meu calor, sozinho. Atraiçoado. Daquela aventura ficou o bocado que me amarga a língua, perene. Não desses razão pra que tu fizeste. Me sento na praça e vejo meu lar. Flutuam calçadas, entortam os postes, reviram as gentes pra não me obstruir. Avisto o casamento, jubiloso instrumento pra resistir a seca, para um deserto coração. Revejo a casa, o cheiro dos filhos, paragem agreste onde era feliz. Insisto em seu rosto, nos poros, nas sardas. Seu mapa inteiro ainda guardo. Meu rosto parado não chama atenção, como quem sabe que não choverá, tão cedo. Espero a balança pender para um lado. Um vento macio sai do prato direto. Uma lâmina azulada do prato esquerdo. Se fico feliz é porque me iludo, procuro algo além do que sou: Castrado. Aquela senhora parece absorta, pacífica. Passeia num cemitério de emanações. Não sabe da sorte, do seu desabrigo. Não sabe da morte, do dia de não estar, da lâmina apontada para o seu umbigo.



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Meu canto está dolorido, como garganta inflamada, perdida. Do sorriso que dou para Selma não extraio alegria. Apenas os sons que se curvam na boca, que raspam nos dentes, se orientam na língua e saem, libertos. Mostro o cansaço de ficar nessa raia, aos olhos de alguns e suas bondades. Sou injusto em pensar que não estamos mais juntos. Ela está, não tenho dúvidas, em mim. Cantamos na praça depois de desaparecido nosso filho. Perdemos o prumo, a bússola tenra, os pontos cardeais. Ficamos parados, como quem se perde em uma feira, pra ele nos achar. Não sei de quem é a culpa se o afeto secou. Vivemos das cascas. Se vejo uma moça bela e jovem se emocionar com o que canto, me preparo pra fugir. Não sei se consigo, deixar a mulher e o filho ausente pra trás. Se sei daquele janota que porá em silencio o lugar não conto a mim mesmo. Pois cresce a coragem de botar em curso a vontade que eu não quero ter. Ensaio os sorrisos, os quantos mais for possível, pra combater a maldade que faria em te deixar. E canto. Lembro e saúdo aquilo que faziam na praça, que acendia o lugar: uma cesta de frutas, um bom livro, intacto, um solo de clarineta.




Douglas König de Oliveira

2 comentários:

Roberto Hobold disse...

Baixou o santo? Tás inspirado, hein?

Anônimo disse...

Estes e os outros videntes vão deixar saudade...
Que nos encontremos mais vezes!
Abração, Douglas.