quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Pedro e Plácido



Ainda me entristece o que foi acontecer a Pedro Romano. De onde veio meu vaticínio quando o vi pela penúltima vez? Jovem robusto, bem forjado pela natureza, que também lhe deu instintos de mansa escuridão. Na paisagem das coisas que falava tirei meu alimento naqueles anos. Pensei ser feliz consigo, com a tessitura de sua pele em minhas mãos, desgraçadamente juntos. Lembro da vida medida por ele: quantas vezes se ia da mais alta nuvem ao precipício. Se isso valia a paragem nesse extinto fruto de contentamento, em seus dias.
A poucos anos nascia-mos. Tentávamos descobrir algo a descortinar, exibir seus raios em nossa fronte. Da cor dos velhos já sabíamos, de atender na venda, das suas necessidades. Nas folgas nos perdíamos no casarão, com a negra de seios grandes, quando o corpo voltava a nascer. Nesse trecho foi nossa mãe. Naquele momento que roçou seu dedos no meu ouvido, envoltos em santa luxuria, os três, foi na minha orelha que buscou conforto. Embaralhava-mos cartas em chamas. Acolhi a sua brutalidade como peça frágil, e em cacos, devoto. Assim me obteve de resto.
Nunca fui feliz sem ele. Reconheço sua imagem nos sorrisos das fotografias em que apareço. É a presença dele entre minhas gengivas, meu motivo, minha canção. Mas eis que surge uma sombra peçonha. Sereia rouca que o seduziu, o afundou na maré. Não pude protegê-lo. Meu exercício de gestos ficou congelado, tristeza em mármore, desilusão. Da perfeição de sua lembrança foi morta a raiz, e o narciso foi cortado em botão.
Agora vejo sua carne estendida, inanimada. Sob o pano o recorte da face, eterno horizonte. Meu sol que se põe pela ultima vez. Engredo as mãos em seus cabelos. Sinto a ponta de suas unhas por cortar, que continuam a crescer sem fazer barulho, como réquiem de um destino final, comum. Olho a sala vazia e adentro seu dormitório unitário, por sobre seu peito gelado. Abraço-me a ele como vivo, meu amor. Beijo suas pálpebras sob os olhos vítreos, imagino suas lágrimas, talvez por mim em seu lugar. Me lembro o que dizia pra fazer rir de meu nome:

- Lá vem o Plácido, tempestuoso...

Ele não morreu.







à Lúcio Cardoso, que não morreu de malária
e Raduan Nassar, exilado da cólera

Douglas König de Oliveira

Nenhum comentário: