quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Eliseu



Meu vizinho Eliseu sempre nos conta da época em que trabalhava num cinema, onde era projetista. Diz que foi o melhor trabalho que já teve e fala dos inúmeros filmes que, de tanto passar para os outros, ficaram tatuados na sua mente. Ainda guarda alguns cartazes desses tempos em sua casa, e volumes de historias sobre cada um deles, de suas glórias. Mas ele se emociona mesmo quando conta um episódio sinistro que o fez largar a profissão:
A sessão estava um pouco vazia e já ia a metade do filme. Entra um jovem vagarosamente e vai até a primeira fileira, onde não havia ninguém. Observa o filme distraidamente, olha os cantos, tenta reconhecer alguém no lusco-fusco da sala.
A platéia atenta ao drama da tela não desconfia. Da sala de projeção Eliseu vê um movimento abrupto do jovem e seu coração dispara, não cabe no peito. Ele retira um revolver da roupa e aponta para a platéia. O som das ameaças não chegava a cabine de projeção. Eliseu vê a cena como um filme mudo, como um Buster Keaton bélico e enfurecido.
A platéia é rendida e inicia um macabro jogo de cena. O jovem começa a dirigir as pessoas em situações fictícias, como um diretor de cinema. Numa rápida conversa parece escolher um episódio com a vítima, algum que lhe tenha um significado especial. Baliza o cenário e começa a cena. Da sala Eliseu começa a reconhecer , dentre os tantos filmes que já vira, aspectos familiares nas atuações.
O primeiro representa o absurdo de não conseguir sair de uma sala, sem que haja nenhum motivo claro para isso. Se descabela, rasga um pouco a roupa e simula, ou não, um rosto perplexo. Ao terminar a cena se dirige de volta a cadeira, mas é alvejado nas costas e cai, morto. O anjo exterminador ainda não havia dado o seu indulto.
O próximo imita o olhar vazio de Alain Delon no eclipse de Antonioni. Se desloca geometricamente pelo espaço, move-se insólito com uma Mônica Vitti de corpo ausente. Ao final, como no filme, a cena transcorre sem nenhum personagem.
Vendo o inevitável abismo da situação as interpretações começavam estranhamente a ficarem melhores. Talvez pensassem que esse último ato poderia ser digno, talvez até de crítica. Surgiram gladiadores ferozes, Quixotes convictos e até um Zorro.
Um que interpretou o fim de Charles Foster Kane nem quis levantar após pronunciar o seu “Rosebud”. Ficou deitado esperando a morte ser reiterada. Outro reclamou que havia apenas uma arma para reproduzir a chacina de Bonnie e Clyde. Um senhor de bigodes quis virar Charles Bronson, ainda que de mãos vazias, num duelo de Sergio Leone. Pôde-se ver mesmo um esboço de sorriso quando caiu no chão desértico dos faroestes, na verdade o piso de madeira do velho cinema. Houve ainda um perfeito imitador de Peter Sellers, que conseguiu a simpatia até mesmo do jovem algoz. Pena ter descoberto seu talento em ocasião tão crepuscular.
Apenas uma velha senhora foi poupada. Dançando em seu ritmo frágil, como que imaginando uma orquestra que acompanha-se seus anos, criava um Fred Astaire galante na cena, em seus olhos. Além disso, o seu filme já estava chegando aos créditos finais.
Depois das inúmeras cenas interpretadas pelos atores terminais o jovem parecia satisfeito. Talvez com seu personagem, talvez por tudo aquilo operado por ele parecer uma ficção. Então, antes de sair, aponta a arma para a tela e dispara. Atinge o ombro direito de Marlon Brando. Sua cúmplice na tela, a espera de um último tango, terminaria o serviço. A luz da projeção, por entre a poeira mexida, revelava os corpos espalhados pelo chão como os russos na escadaria de Odessa.
Perguntamos ao Eliseu o por que dele não ajudar, não chamar a policia? Ele lança um olhar lacônico, como que nos condenando por querer saber demais. Perguntamos quantas balas o jovem tinha, se foi pego após o ocorrido? Ele não nos responde, não quer responder. Seus olhos úmidos impõem o respeito necessário após o alumbramento.
As vezes dá muita vontade de acreditar nas histórias do Eliseu.


Douglas König de Oliveira