quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Aurélio botou fogo na árvore
atrás de casa, frutífera
fogo era tempo, o tronco passado
ausência que o traçado consumia
a pele do fruto abrindo, expondo a polpa víscera,
e a membrana cedendo vida, carvão
ruína úmida de planta, brilho extinto de folhas,
de ramo precipício
plana fuligem, ninguém respira o ar da casa
raiz hospedada no trecho, no solo mudo,
sem comunhão
memória de um sol deposto
arde aquilo que era
enquanto queima no pátio,
pendurado na árvore acessa
se despe dos olhos de Pai,
sem alvo, sem ar

Douglas König de Oliveira
Joana morreu
nossa vizinha
sigo atento
este afeto urbano
de pertencer a mesma quadra
e compor a sala
de velhas cadeiras
os golpes que contam
que enfeitam
num canto agoureiro
coro de corvos
de plenas fraturas
trinados de um rasgo certeiro
retrato de açougue
estampada sorte
em que se enrola os peixes

era freqüente
em nossa casa seu pálido e estreito
revestimento
torcido alicerce
e cascas de cal
represa expressão pela
cicatriz acre, esquerda
órbitas capturadas
paralisia funda, acesa

lábios retesos
barram a saliva azeda
a pele rígida, réptil
vestida de pó
tarde lenta
de impressões famintas
os ossos dos pés
estalam ocos
nos sons das tampas
pelo vidro
gestos adormecidos

forjadas sem fio
as manhãs em que os vizinhos morrem
parecem iguais
seguir o tráfego obtuso
brisas mórbidas de café
conchas violáceas que reportam o mar
tecido rasgado da infância
cães e plumas sem nome, esquecidos
na carne falida dos miolos


Douglas König de Oliveira

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Repetições

Ela sempre fora muito alegre e cativante. Simpática, além de bela, não havia quem não a desejasse. Ela, encantada com todos os galanteios, só lamentava as cantadas grosseiras e fúteis. O mundo era de arco-íris para ela. Porém, havia um problema, grande. Ela era ingênua.

Casou-se a primeira vez, ainda nova, quando se entregou totalmente àquele que lhe parecia o príncipe encantado. Beijou o príncipe mil vezes, e cada beijo parecia transformá-lo. Um dia o príncipe acordou sapo. Foi custoso, mas resolveu deixa-lo, encantada que estava por outro, este sim sua cara metade. Passada a dor da separação, ainda que a separação fosse caso de vida ou morte, vieram os momentos de alegria. Até que... A sua outra metade roubava-lhe a metade que ela era, seria, não era. Sentiu-se exaurida. O encanto a fez cair nos braços de outro.

O outro era tudo, trabalhador, sério, respeitava-a, até a deixava trabalhar fora, mas nada que comprometesse o serviço da casa. Ah! Os outros dois não permitiram que ela saísse, mesmo para passear. Agora, uma evolução e tanto. O tempo, parecendo sempre ingrato, tratou de mostrar o mundo. A liberdade condicionada roubava-lhe a vitalidade. O outro parecia um vampiro. A separação novamente, ele achando que dera muita liberdade para ela, ela se achando uma total fracassada.

O tempo passou num vazio. Nada mais parecia interessá-la. Foi quando ela percebeu algo novo, algo que poderia mudar a sua vida. E aí estava uma das grandes ingenuidades dela, acreditar que alguém poderia mudar a sua vida. Foram tempos difíceis, de muitas dúvidas, mas numa esperança que se avolumava. Era ele quem ela tanto procurava. Agora sim seria feliz. E aí estava outra, acreditar que alguém poderia fazê-la feliz.

O casamento foi comemorado com grande alegria. Muitas pessoas, “agora vai!”, e tudo o mais. No dia seguinte, ao acordar, ela virou para o lado, e não reconheceu quem ali estava.

P.S.: Pra dizer o que eu penso das eleições nos EUA. Torço para estar enganado.